quarta-feira, 31 de março de 2010

O Depois...


Vejo a chuva cair lá fora… sinto-lhe o gosto na boca, embora as suas gotas frescas não cheguem até mim. Sinto o odor da terra molhada, dos frutos caídos pelo chão e relembro… Relembro aquela tarde ranhosa em que tudo começou, em que deitados na erva fria ainda molhada, ficamos juntinhos a olhar o céu cinzento, esperando que o sol se lembrasse de aparecer e que a chuva se esquecesse de cair… incapazes de nos olhar de frente, incapazes de dizer o que verdadeiramente sentíamos, mantendo uma conversa trivial para que o silêncio não aumentasse o nervosismo que se havia instalado. Estávamos tão nervosos os dois que quase podia jurar ter ouvido o teu coração bater, enquanto a medo tentava disfarçar o batimento do meu… já bastava as faces ruborizadas que sabia ter.

Falávamos do tempo, da vida, de tudo e de nada ao mesmo tempo, conhecendo-nos demoradamente, incapazes de reter tudo que ouvíamos, fazíamos de um tudo para esquecer o desejo que nos fazia apenas pensar/ansiar por um beijo… aquele beijo… o primeiro de todos, que nos leva através do desconhecido, que nos dá a conhecer os sabores, os odores, o jeito tolo de beijar sem saber bem como. Engraçado, como o primeiro beijo é o mais desejado/ansiado de todos, mas aquele que determina o futuro imediato… aquele que aproxima o corpo da alma num ritual que é mais do que uma simples troca de fluidos e sensações… e ao mesmo tempo tem uma pressão tão grande inerente… se correr bem, as bocas tem dificuldade em separar-se, engolem-se urgentemente na ânsia do querer mais… se correr mal, separam-se meio sem jeito, evitando o olhar, com o silêncio a pesar mais do que antes, sem saber o que fazer ou dizer, aguardando que o tempo passe bem depressa.

Como um acto tão simples se torna tão complexo… Mas connosco não foi assim… não… passamos uma tarde a dois, meio sem jeito, com medo do antes, do durante e do depois… tanta era a vontade que houvesse um depois… que tolamente nos esquecemos de dar o primeiro passo ou quem sabe o evitamos propositadamente… e a noite chegou… trouxe até nós o cheiro do desconhecido… o brilho das estrelas ao acordar… o sorriso da lua para nos acompanhar… E somente aí… no silêncio da noite, sob o brilho das estrelas, envolvidos na escuridão da noite, sob a protecção da lua, só aí esse momento tão ansiado chegou… E aquele beijo tão desejado chegou poderoso, imponente e sôfrego, com mais amor, desejo, paixão e tesão do que teria se tivesse chegado horas antes… toda aquela tortuosa expectativa nada mais fez que aumentar os desejos, despertar os sentidos e pô-los em estado de alerta, nada mais fez do que tornar aquele acto simples, numa torrente de desejos esfomeados e acorrentados por tempo demais… Quem sabe talvez por isso a explosão que se fez sentir dentro de nós nos deixou em silêncio mais uma vez… mas desta vez num silêncio cúmplice, sentido, compreendido, fundido… em que nada mais era preciso dizer, já estava tudo subentendido… nossos olhares diziam tudo que precisávamos dizer… nossos corpos sentiam tudo que precisavam sentir e o tempo corria depressa sem se fazer notar… o dia já amanhecia, a noite chegava ao fim e nós ali abraçados sem querer saber do depois, do amanhã, até porque já era amanhã…

Separamo-nos a custo, afinal aquele primeiro beijo não se tinha ficado pelo primeiro, trouxe consigo o depois, a vontade, a loucura… trouxe consigo o amanhã e a certeza do incerto que se adivinhava estar a caminho, mas que agora se tinha tornado num incerto a dois… afinal aquele beijo, trazia consigo um depois.


texto por Isabel Reis
foto por Nuno Tavares
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